O ensino de arte e a leitura de imagens 

Anamelia Bueno Buoro

Pedro Paulo Aloia Atihe realiza grande produção de desenhos sempre que assiste a jogos de futebol e desenhos animados pela TV, joga videogame e vive situações novas, sejam elas interessantes ou ameaçadoras. Os desenhos que utilizei foram feitos por ele aos 5 anos.

     É Vincent Lanier  quem afirma que "o que a Arte Educação precisa é de um forte conceito central" (1984, pp. 4-8). Ao longo de todo o seu texto, o autor defende a idéia de um çç>nceito coeso de aprendizagem de arte, ao mesmo tempo que relata sua longa experiência trabalhando com um ensino de arte a serviço da responsa  bilidade social, numa posição contextualista. Em seguida, informa que tem adotado uma atitude essencialista na busca desse "conceito central forte" vinculado aos referenciais artísticos, cuidando de enfatizar que os educadores devem centrar seu trabalho nos domínios dos procedimentos estéticos visuais para que "devolvamos a arte à Arte Educação". Hoje, já é possível avaliar os avanços feitos nesse campo simplesmente inteirando-nos de pesquisas e documentos elaborados pelo Ministério da Educação e Cultura - MEC para que a educação seja devolvida à arte. Prova concreta dessa preocupação é a alteração do nome da disciplina de Educação Artística para Arte. 2 Em contrapartida, e segundo o livro A imagem no ensino da arte: anos oitenta e novos tempos (Barbosa, 1991), a fruição, a apreciação artística ou a leitura da imagem e a História da Arte ainda não haviam conquistado espaço no ensino de arte na década de 1980. 

    O crítico Rodrigo Naves, em palestra proferida em 1997 no Núcleo de Estudos e Pesquisas Sociológicas de São Paulo - NEPS, questionava legitimamente o pouco interesse dos brasileiros pela discussão da arte, por exemplo, nas mesas de bar, em contraposição ao grande interesse - e conseqüente domínio - que esses mesmos homens e mulheres demonstram sempre que discutem futebol, freqüentemente lançando mão de argumentos criteriosos e evidenciando um surpreendente repertório sobre o assunto. Se somos capazes de construir um conhecimento que sustente nossa argumentação sobre futebol, por certo poderemos sê-lo também no que diz respeito a construir um conhecimento em arte que aguce nossas percepções, bem como nos capacite a ler o mundo com olhares revigorantes e revigorados. É inegável que o investimento no conhecimento do futebol vem acontecendo há muito tempo em nosso país, e a mídia tem se incumbido de instrumentalizar teoricamente as análises dos interessados no assunto. Contudo, se mesmo não acontece com o conhecimento da arte, será preciso que, em algum momento e por obra de algum outro sujeito, esse saber, ainda tão elitizado, passe a freqüentar o cotidiano do cidadão comum, invadindo a mídia e os espaços urbanos idealizados ou não a fim de promover as artes por meio de exposições e eventos.

    Só com investimentos de toda sorte a construção de conhecimento em arte deixará de ser uma ficção ou de se manter restrita a um universo de privilegiados para encarnar-se de fato na realidade concreta, passando assim a participar da vida dos brasileiros. A melhor capacitação dos agentes envolvidos em projetos que integrem a arte e a educação é, pois, o passo decisivo para despertar outros indivíduos para o contato e as experiências que a arte proporciona. Arte e conhecimento para muito mais gente, arte e conhecimento para todos: se cremos nessa afirmação, é preciso que nossa ação educacional revista-se da autoridade fundamentada também por amplo saber do assunto. Os potenciais para esse desabrochamento não são de modo algum desprezíveis, muito menos se considerarmosestrondoso sucesso evidenciado pela maciça afluência de cidadãos comuns a exposições amplamente divulgadas nos meios de comunicação, em especial a TV, como as de Rodin, Dali e Monet, realizadas em São Paulo.


    A afluência de público surpreendeu até mesmo organizadores, e os esforços dos museus em preparar monitores e elaborar material de multimídia de qualidade não foram suficientes para suprir a carência generalizada de conhecimento da linguagem da arte. A intuição e a sensibilidade ajudaram na medida do possível, muito embora tenha restado uma consciência aguda dos problemas de diversas ordens na abordagem da leitura das obras expostas. Um dos mais flagrantes diz respeito aos visitantes que, ao se utilizarem do monitor como tradutor, não permitiam que seus olhos vissem por si mesmos, inseguros de sua capacidade de construir significados na leitura de uma imagem. Além disso, ainda impera o vício da utilização do monitor como um informante sobre a vida e o cotidiano , do artista, bem como sobre as técnicas por ele utilizadas. Fica assim I referido que o ensino de arte no Brasil ainda não conseguiu construir leitores de imagens com formação e informação em quantidade suficiente para que esse panorama seja passível de transformação. Sobre a questão da leitura da imagem no ensino da arte brasileira, pode-se assumir que o assunto começou a emergir com ênfase entre os educadores a partir do 3° Simpósio sobre o Ensino da Arte e sua História (São Paulo, MAC-USP, 14-18 de agosto de 1989). Esse encontro resultou na publicação da obra organizada por Ana Mae Barbosa e Heloísa Margarida Sales (1990), a qual procurava estabelecer os eixos filosóficos e conceituais que sustentam as diferentes propostas de ensino de arte. Entre os temas abordados nessa ocasião figuravam crítica, História da Arte, Arte Educação em Museus, currículo, pluralismo cultural, História do Ensino da Arte e leitura da imagem. Uma das conferências publicadas, realizada por Eduardo Penuela Canizal, voltou sua atenção para a questão da leitura da imagem. Intitulava-se "As fascinantes conquistas da leitura". 

    Coincidentemente, foi nessa mesma época que travei contato com a metodologia de leitura da imagem de Robert Ott5 e, em seguida, com a de Edmund Feldman6 Em outra oportunidade, pude ainda conhecer as pesquisas de Michael Parsons (1992) sobre leitura de imagens e, a partir disso, sob a coordenação de Miriam Celeste Martins, participar de um levantamento de dados com alunos e professores de arte da Escola Nossa Senhora das Graças, envolvendo crianças, e com elas trabalhar a leitura de imagens. Nessa mesma ocasião, meu objetivo foi o de recolher informações sobre as crianças que já realizavam trabalhos baseados nesse tipo de leitura, partindo das premissas estabelecidas por Parsons. Juntando esses resultados e relacionando-os com os documentos produzidos pelo MEC, sob as siglas PCN (Parâmetros Curriculares Nacionais) e RCN (Referencial Curricular Nacional), é possível afirmar que estes procuram estabelecer paradigmas para um ensino de arte no Brasil baseado no contato do aluno com múltiplas linguagens: artes visuais, música, dança e teatro. Dessa forma, percebe-se que as propostas de ensino da arte começam a estruturar­se cada vez mais com base em "conceitos fortes", os mesmos que devem ser referência à prática educativa. 

    Com relação às artes visuais, os PCNs de primeiro e segundo ciclos do ensino fundamental e o RCN de educação infantil estruturam o trabalho no triplo eixo produção/fruição/reflexão. Os PCNs de terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental incorporam à reflexãoitem contextualização. Nota-se que, a partir do final do milênio, a leitura da imagem começa a despontar oficialmente como um desses paradigmas norteadores do ensino de arte no Brasil. O interesse específico deste livro é o de discutir a construção da significação imbricada no processo de construção do leitor, e que o trabalho no triplo eixo produção/fruição/reflexão. Os PCNs de terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental incorporam à reflexão o item contextualização. Nota-se que, a partir do final do milênio, a leitura da imagem começa a despontar oficialmente como um desses paradigmas norteadores do ensino de arte no Brasil.

    O interesse específico deste livro é o de discutir a construção da significação imbricada no processo de construção do leitor, e que será doravante denominado "leitura da imagem", por entender que o termo define com mais acuidade o viés de minhas reflexões. A leitura de imagens partirá da premissa de que arte é linguagem, construção humana que comunica idéias, e o objeto arte será considerado, portanto, como texto visual. A conceituação de texto faz-se aqui imprescindível, na medida em que as construções que essa linguagem gera, ao serem consideradas textos visuais, serão também capazes de abarcar seus próprios significados. Abordaremos esse conceito mais adiante.

    Quanto à questão que envolve a opção pelo termo "leitura da imagem" em lugar de "fruição" ou "apreciação': como aparece nos PCNs e RCN, o Novo Dicionário Aurélio (Ferreira, 1999) informa pontualmente que o termo "fruição", tal como aparece no contexto dos PCNs e RCN, origina-se "do latim fruitione" e significa "ação ou efeito de fruir; gozo, posse, usufruto". O verbo de ação "fruir" (idem), por sua vez, origina-se da forma latina "fruere" e significa "estar na posse de; possuir, gozar, desfrutar". A mesma fonte revela que o substantivo "leitura" (idem) origina-se "do latim medieval lectura", significando "ato ou efeito de ler; arte ou modo de interpretar e fixar um texto de autor, segundo determinado critério". Assim, a opção pela palavra leitura faz sentido, posto que pretendo focalizar processo de construção do leitor com base na ação desse mesmo leitor como decifrador do texto de um autor. Não proponho com isso a negação da possibilidade nem, tampouco, questionar a vigência do ato da fruição. Ao contrário, é possível afirmar sua presença ineludível na construção desse leitor significativo, reforçando contudo que o maior interesse deste trabalho volta-se para o co-produtor do texto visual, que, ao decifrar a mensagem do autor, estabelece relações significativas com a obra de arte pelas vias da operação da leitura. Na tese já citada A leitura de imagens para a educação, Sandra Regina Ramalho e Oliveira (1998) afirma:

( ... ) as pessoas, de um modo geral, têm dificuldades para compreender as manifestações dos côdigos estéticos, indiferentemente do sistema do qual façam parte e independentemente de se tratarem de informações artísticas ou estéticas. Uns, para encobrir o desconhecimento, alegam não gostar ou não ter interesse por tais produtos; outros simulam que a compreensão é tácita e evitam discuti-los; um terceiro grupo apela para interpretações baseadas em critérios extra-estéticos, como os pautados estritamente pelas emoções e pelos sentimentos ou até mesmo pela valoração comercial. Em suma, o que se ouve e o que se vê pouco ou nada tem a ver com o que há para ver e ouvir.


    Concordando com tal afirmativa e optando apenas por substituir termo "código" por "sistema", pode-se dizer que a construção do leitor deve compreender sua "alfabetização" nos elementos do sistema da linguagem que lhe interessa dominar. Se o sistema é visual, para que o texto possa ser lido, será necessário que tal leitor obtenha conhecimento prévio da organização do sistema de linguagem visual.


    A conscíêncía de que cada fínguagem se estrutura por meío áe sistemas específicos poderá levá-lo a envolver-se no processo de compreensão desse texto mediante uma interação significativa que a bos venham a estabelecer. Um educador em artes visuais precisa,  aprender a reconhecer os elementos que estruturam as linguagens plásticas, ao mesmo tempo que deve construir-se ele mesmo um leitor de imagens visuais.

    Segundo o Dicionário de Semiótica, de Greimas e Courtés (1983,  460) "texto" designa uma grandeza delimitada. Muitas vezes, prega-se o termo como sinônimo de discurso ou, em sentido restritivo, "quando a natureza do objeto escolhido (a obra de um escritor, um conjunto de documentos conhecidos ou de depoimentos 􀀣olhidos) marca-lhe os limites; nesse sentido, texto se torna sinônimo de corpus''.

    No livro de José Luiz Fiorin, Elementos de análise do discurso (1997, p. 31), temos que toda vez que um plano do conteúdo se manifesta por um plano de expressão surge um texto. O texto é, portanto, um todo de sentido. Pode-se então afirmar que a imagem da arte vista como todo de sentido é texto visual. Nosso universo interno, tanto quanto a realidade objetiva, é dominado pela imagem. Por meio de imagens construímos nosso pensar, assim como organizamos seus produtos. Surpreen­emente, porém, não existia no currículo escolar anterior aosPCNS e RCN nenhuma preocupação formalizada pelo Ministério da çãEducaçãoo que envolvesse o ensino de arte voltado à construção do conhecimento de leitores de imagens. A primeira iniciativa mais sistemática diz respeito à "Proposta Triangular" de Ana Mae Barbosa, pioneira e desencadeadora de inúmeros trabalhos, pesquisas e interesses sobre a questão da leitura da imagem. Embora a tradição histórica brasileira no ensino da arte esteja centrada no fazer concreto da produção de objetos, e não na leitura das imagens, percebe-se que vem aumentando significativamente o interesse do educador por conhecimentos mais aprofundados nessa área. 

    No livro O olhar em construção (1996), abordei frontalmente a questão, apresentando uma metodologia tal como foi proposta por Robert Ott, 10 como primeira alternativa dentro de uma abordagem da leitura da imagem. A partir desse trabalho, travei contato com o arcabouço teórico desenvolvido por A. J. Greimas e, ao longo do percurso de doutorado, pude até certo ponto experimentar aproximações entre fragmentos do corpus teórico greimasiano e o trabalho de um professor de arte. 

    A leitura da imagem posta como paradigma desta pesquisa possibilita confrontar novas aquisições teóricas com um percurso metodológico já trilhado na experiência do mestrado, baseado na proposta de Robert Ott. Assim, se a metodologia mencionada cumpriu seu papel naquela ocasião, ela soube igualmente assegurar-me a consciência de que a abordagem da leitura das imagens não acontece do modo estanque como fora apresentada por seu idealizador. Nesse sentido, pude constatar na prática que o percorrer do olho sobre a superfície plana da pintura acontecia mediante uma interação entre olho e objeto, em que o olho, num movimento contínuo sobre a materialidade da pintura, ia estabelecendo relações entre as figurativizações11 e construindo significações geradas pelos significantes do texto visual. Assim, o olho do leitor percorre, no tempo e no espaço, um caminho ao longo do qual são geradas significações e são construídos sentidos. 

    De volta aos passos metodológicos propostos por Ott, percebi que eles estão presentes nesses movimentos visuais do leitor, não como habilidades estanques, como já mencionei e como aparecem em sua metodologia, mas como competências presentes em todos os processos de leitura. Desse modo, descrever, analisar e interpretar são etapas que se intersemiotizam ao longo de toda a leitura, no tempo do leitor. Se, no momento do mestrado, fez-se necessária a escolha de um suporte metodológico simples e claro para nortear a pesquisa acerca da construção de leitores de imagem, no momento atual persiste a noção de que, mesmo com o ancoramento da teoria greimasiana, ainda é fundamental a manutenção do foco na proposição de metodologias simples e claras, mais próximas das possibilidades e necessidades que estimulam a ação do educador brasileiro. 

    Em resumo, nos percursos de transformação do conhecimento do educador e na etapa das vivências em sala de aula, é preciso disponibilizar modelos variados para a experimentação, pois só com um repertório elaborado com base em experimentações e vivências será possível avaliar de fato as diferentes metodologias e então criar ou escolher aquela que responda aos parâmetros da realidade. Acredito, igualmente, que muitas metodologias de leitura de imagem :x>ssam ser ampliadas e aprofundadas, partindo de novos subsídios teóricos que auxiliem o educador de arte nesse trabalho.


    A opção pela teoria greimasiana apresenta-se aqui como o caminho escolhido para conduzir minha abordagem da leitura do texto visual, tanto para adultos quanto para crianças, uma vez que pude trilhá-lo na prática da sala de aula com alunos de 1ª a 4ª série e com alunos de universidade. Sendo assim, estas reflexões assentam-se sobre escolhas teóricas que puderam até certo ponto e, em certa medida, integrar-se ao universo concreto do educador de arte e ao âmbito de sua pesquisa, se o mesmo estiver comprometido com a construção de leitores de imagens visuais. 









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